sábado, 26 de novembro de 2011

Pássaro negro

Vejo a morte nos olhos da minha mãe. Um pássaro negro esvoaça à sua volta, ensaiando lentamente o voo rumo ao outro lado, aquele que oculto por um véu, esconde de mim, o incomensurável mistério. Como dói, encontrar a morte através de quem mais amamos. Deixa-nos impotentes, incapazes, míseros, reduzidos na nossa insignificância. Mas aquele imenso pássaro negro, detêm-se ainda e apenas, o tempo para colher mais algumas penas, as dela que se misturam com as minhas ou não fosse este corpo que agora habito, nascido do dela. No seu derradeiro voo, o pássaro negro não olhará para trás, ainda que em lágrimas me deixe, ainda que a saudade me aperte o peito, ainda que as memórias se transformem em sombras. Despeço-me sem raiva, sem mágoa e sem revolta. Despeço-me do laço quebrado, do colo roubado, despeço-me contorcendo-me de dor, da guardiã da minha infância feliz, despeço-me desta parte de mim que ao partir, deixará um vazio que nada neste mundo poderá alguma vez preencher mas guardarei para sempre a memória, do brilho do amor que iluminava sempre os seus olhos, o imenso amor que sentia por mim e que acredito, nem a morte conseguirá destruir. Amo-te mãe e amar-te-ei sempre.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Bolinhas de sabão

Trago sempre comigo, ciosamente guardados dentro do peito, uns quantos sonhos e, há dias assim, em que me apetece soltá-los. Quem sabe, o que poderá acontecer-lhes ao atingirem o céu!
Os meus sonhos são em forma de bolinhas de sabão. Só elas conseguem reflectir as cores do arco-íris. Dá gosto vê-las subir bem alto… depois fecho os olhos. Não com muita força claro, e permito-me imaginar que algures, bem para lá da nuvem que passa, se não para mim, eles encontrem alguém que precise de alguma magia.
Somos incessantemente agredidos pela fealdade e crueldade humana. A vida que há muito perdeu o seu sentido ascensional, mantém-nos aprisionados a um mundo, de onde se baniu a capacidade de acreditar. Um mundo que construído e mantido por todos nós, se tornou num lugar pouco apetecível para se estar porque sem sonhos, não existe esperança.
Mas hoje, sobretudo hoje, resolvi virar costas e rebelar-me veementemente contra tudo isso. Ainda, ainda e apesar de tudo, existe um lugar que se mantém intocado pelo horror que me cerca e que teima em me agredir. Um mundo só meu. Uma janela sobre mim mesma , de onde posso soltar os meus sonhos em forma de bolinhas de sabão, mas sobretudo acreditar que sendo livres eles possam tornar-se realidade.

Estação das perdas

De quando em vez, a nossa alma fica retida na estação das perdas.
Assemelham-se a uma espécie de plataformas de incomensurável dor provocadas pela partida de familiares e amigos, dor essa que ao invés de se diluir, mergulhando-nos no esquecimento, se intensifica numa agonia proporcional à distância percorrida e também mais empobrecidos nos nossos afectos.
Apagados pela borracha do tempo, pequenos gestos, palavras, rostos e vozes, instantes partilhados, são revisitados pela alma que levada pela saudade nos mantém presente, que somos a soma de tudo o que deles ficou em nós.
Jamais poderemos evitar a estação das perdas e tão pouco, aprender a suportar o silêncio das vozes que se calaram mas seguimos viagem. De novo, só a nossa alma sabe, apenas sabe, em quantas mais estações deixaremos as nossas lágrimas e em qual delas ficará a derradeira, porém, em cada uma subsiste uma ténue e bela luz, que nos transmite sempre, esperança.






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Tempo de faxina

De vez em quando é preciso arrumar a nossa casa. Não aquela onde vivemos mas sim aquela onde nos recolhemos sempre que a vida nos faz doer, sempre que nos voltamos para o mais fundo e profundo de nós, a nossa alma.
A idade traz-nos isso. A urgência de, a dada altura, fazermos uma faxina bem objectiva. Limpar tudo o que não valeu a pena. Quem nos mentiu. Quem nos invejou. Quem nos fez mal, sobretudo, todas aquelas pessoas que não se preocuparam em saber como realmente sou. Me julgaram, condenaram e tentaram ferir, por puro egoísmo e maldade.
Mas apago apenas os seus gestos, as lições que essa escola de dor, proporcionaram, guardo-as ciosamente na memória.
São elas que me mantêm presente, o valor das pessoas verdadeiras, que me cederam o seu tempo, que me escutaram, que me estenderam a mão, que me ofereceram palavras e quantas vezes, apenas um sorriso, essas, todas elas, guardo-as na alma.
Curto, demasiado curto será sempre a minha permanência nesta casa. O tempo corre veloz e num de repente há que partir e quem sabe, habitar uma outra. Seguramente que mais leve, desejo que por bagagem, leve comigo apenas, tudo aquilo que conferiu ao meu caminho, o seu sentido ascensional.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Isabel do Valle
Cantora, Escritora e Professora de Música
Isabel do Valle nasceu em Lisboa a 22 de Janeiro de 1961. Aos cinco anos de idade, entra para a Escola de Bailado do Teatro de São Carlos e mais tarde para o Conservatório Nacional.
Começa a cantar muito cedo, em 1974 mas só se profissionaliza em 1980.
Na década de 90 descobre a escrita e passa a publicar semanalmente as suas crónicas num dos jornais regionais do Algarve “ A Avezinha” ao mesmo tempo que vai ganhando experiência para escrever as suas próprias histórias, cujo sonho de ver editados, acalenta.
Paralelamente à sua carreira profissional como cantora, é professora de música e mãe de 4 raparigas.

- Quais eram os teus sonhos de menina?
I.V. – Quando eu era bem pequenina gostava muito de inventar histórias. Adorava musica, dançar, cantar e de conversar. Era uma grande tagarela, hoje não tanto, às vezes, ainda sou. Mas desde que me conheço que o maior sonho de todos era ser mãe.
. – Como é que descobres a tua vocação?
I.V – Não fui eu quem descobriu, talvez a minha avó e a minha mãe, se bem que não tenham percebido qual, a minha mãe resolveu inscrever-me na Escola de Bailado do Teatro de S. Carlos, aos 5 anos.
. – Acabaste o curso?
I.V. – Infelizmente não porque tive um problema nos pés mas o que lá aprendi a nível de disciplina, e não só, acabou por se tornar muito importante no desempenho daquela que viria a ser a minha profissão principal bem como na vida em geral.
– Como é que surge a música na tua vida?
I.V. – Costumo dizer que foi uma ajuda vinda lá de cima, porque aconteceu logo a seguir a ter deixado a Ballet, talvez como agora, seja a escrita que esteja a ocupar o lugar da música.
– Estás a pensar deixar de cantar, é isso?
I.V. – Nunca o poderei fazer, pelo menos enquanto tiver algum fiozinho de voz. Existe, infelizmente a ideia de que somos artistas porque queremos e isso não é verdade. Nascemos assim e a arte, boa ou má que fazemos está tão intrínseca que não cantar é o mesmo que morrer. Mas também não fui eu que descobri, descobriram-me. Quem fez essa descoberta foi o Zé da Ponte tinha eu 13 anos de idade e a partir daí passei a cantar com alguma regularidade mas guardo uma enorme saudade do primeiro bar onde cantei que se chamava “ Bigodão” e pertencia ao meu querido Milo dos “ Duo Ouro Negro”.
– Mas só te tornas profissional muito mais tarde!
I.V. – Quando tinha 16. Uns amigos levaram-me até ao Zé Cabeleira que nessa altura andava à procura de uma cantora e foi por ficar a trabalhar com ele que aos 18 tirei a carteira profissional. O Zé foi e continuará a ser para mim um amigo muito querido porque foi com ele que aprendi quase tudo o que sei.
– Entretanto, há alguns anos atrás tu decides ir viver para o Algarve. Contente com a mudança?
I.V. – O Algarve é uma região muito enganadora. Quem vem de fora deixa-se apaixonar pelo clima, por uma aparente qualidade de vida, depois é que são elas, porque durante anos, subsistiu um tremendo vazio cultural. Hoje as coisas parecem estar a melhorar um bocadinho, contudo, ainda falta fazer muito. Vim para o Algarve porque nessa altura, ainda se contratavam cantoras e pianistas. Havia alguma preocupação com a qualidade, mas lentamente, os hotéis, em nome da economia, foram preferindo “teclistas” a baixo preço até que nos dias que correm, muitos espaços há, que não contratam sequer artistas nacionais. Profissionalmente, não me poderia sentir mais entristecida porque no Algarve não existe mais lugar para profissionais, para a qualidade, e mais grave que tudo, é uma região que não nos permite crescer e evoluir.
– Como é que descobres a escrita?
I.V. – Ah! Aí foi a escrita que me descobriu a mim. No fundo ela sempre me acompanhou nos momentos de solidão em que pegava num papel e lavava a minha alma, até que não escrever começou a ser, não me sentir. Depois tem a ver com a disponibilidade que temos perante a vida e os outros. O estar disponível creio eu, é o mais importante para podermos captar, observar, sentir e transmitir as coisas.
– escreves semanalmente crónicas para um jornal e com grande sucesso. Queres falar sobre isso?
I.V. – Creio que o sucesso se deve ao tipo de assuntos e à linguagem acessível com que são escritas. Já me disseram que eu escrevo fado, eu chamo-lhe prosa poética. O mundo está repleto de histórias que nos pedem para ser contadas, e eu digo isto, porque na esmagadora maioria das vezes, são essas histórias que vêm ter comigo. São acima de tudo, situações comuns que tocam de perto as pessoas e com as quais elas se identificam.
Acredito que todos carregamos a nossa própria dor que pode ter nascido connosco ou ter sido infligida por alguém. Por vezes, até nos podemos sentir felizes mas porque essa dor está apenas adormecida, mas ela está lá, condicionando a nossa forma de estar, de ser, de pensar e de sentir, e eu, não sei se feliz ou infelizmente, tenho sido capaz de escrever sobre as dores de muitas pessoas.
. – Feliz ou infelizmente porquê?
I.V. – Porque muitas das vezes, dou comigo a reviver a minha própria história e a despertar velhos fantasmas que gostaria desaparecessem para sempre. A escrita tem esse lado doloroso, muitas vezes, descobrimo-nos a nós próprios através das palavras que escrevemos para os outros. E creio que esse tom magoado, esse certo olhar com que vejo as coisas, tem muito de mim, das minhas vivências e quantas vezes, do meu próprio sofrimento. Talvez por ter passado por inúmeras coisas menos boas, eu seja capaz de compreender melhor a dor alheia. Mas não deixa de ser, doloroso.
– Criar para ti é doloroso?
I.V. – Por vezes sim. A escrita é um acto solitário em que mergulhamos dentro de nós mesmos e muitas vezes, de regresso à superfície trazemos algumas coisas que ou não sabíamos, existiam ou que gostaríamos permanecessem afundadas. Mas tento encarar isso como uma espécie de aprendizagem já que a escrita me proporciona um meio de me conhecer melhor a mim própria e aos outros, mas descobri que criar é, sem dúvida alguma, um acto de pura magia.
. – Nunca foste uma artista de grandes palcos nem de grandes plateias. Quererá isso dizer que não tiveste oportunidades?
I.V. – Oh sim, oportunidades tive algumas, mas nunca as agarrei porque sempre tive dentro de mim outro sonho. Sempre quis ser mãe e quando de facto fui, preferi ir cantando por outros circuitos mas ficar perto das minhas filhas. No fundo, eu trabalhava, fazia o que gostava mas enquanto elas dormiam, porque durante o dia, a mãe estava lá. E não me arrependo. Tomei a decisão certa. Talvez hoje, elas não dêem valor a isso, mas um dia, irão concerteza perceber a imensa sorte que tiveram em ter uma mãe presente. É claro que em certas alturas, tive pena. Ficou sempre aquela dúvida se teria sido capaz de chegar mais longe, mas sinto algum orgulho, por nunca me ter deixado amargar por isso. Ao longo do caminho, tive a graça, de ir descobrindo outras capacidades, outras formas de me sentir realizada.

. – O que gostas mais de fazer? Cantar ou escrever?
I.V. – Gosto acima de tudo de comunicar mas acredito que ambas se completam que representam desafios e posturas diferentes.
- Entretanto surge um novo desafio. Ensinar música a crianças. Queres falar sobre isso?
I.V.- Ora aí está outra mão do destino! Uma porta que de repente se abre e por onde se entra sem se saber muito bem por onde vai dar mas que acabou por se revelar numa das coisas mais maravilhosas que a vida me ofereceu.
Não me considero uma professora, pelo menos no sentido prosaico. Tento despertar diversas chamas. A criatividade, o gosto e apetência para as artes, escrita incluída.
Como assim?
I.V. – Dei comigo a escrever para eles. Toda a actividade sugerida, seja ela uma canção, uma dança, um tema musical, tem como ponto de partida uma história. Não sei quem se diverte mais, se eu se eles. Uma coisa é certa, ao ensinar tenho aprendido imenso e rejuvenescido também!
- Em que sentido?
Começar algo completamente novo, sobretudo com a minha idade representou um incomensurável desafio. Senti necessidade de tirar uma série de cursos que me deram valências que tenho vindo a desenvolver. Costumo dizer que a partir do momento que transpus esse portal do tempo, entrei numa dimensão completamente nova, desafiadoramente extraordinária, apaixonante e onde sinto que por fim, posso fazer a diferença. Não existe emoção mais fabulosa que ajudarmos as crianças a fazer coisas, coisas que os “retiram” do lado mais feio da vida e os levam a sentir alegria.
. – O que é o palco para ti?
I.V. – É um espaço mágico. Onde somos capazes de subir aos céus, tocar nas nuvens e ao mesmo tempo, tocarmos os outros.
– O que sentes quando estás no palco?
I.V. – Proximidade com Deus. Como se através da minha arte, eu estivesse a rezar. Quando estou a cantar, sinto-me como que protegida por algo que me transcende.
– Que significado atribuis ao aplauso?
I.V. – Uma tremenda fonte de energia e de incentivo. Um carinho.
– Como é que te surge a ideia de organizares um livro onde os personagens são, afinal de contas, os teus colegas do meio artistico?
I.V. – Por incrível que pareça, como tudo na minha vida, também foi este livro que me descobriu a mim. A ideia surgiu a meio da noite, assim, vinda do nada e no começo confesso que fiquei um bocadinho assustada. Quem seria eu para fazer com que toda esta gente grande se dignasse a perder o seu tempo comigo, mas surpreendentemente, recebi da parte de todos eles, um imenso carinho. Só comecei mesmo a perceber a finalidade deste projecto, quando me fui apercebendo da excelente qualidade humana dessas pessoas que sempre admirei. E inegavelmente, todo este trabalho foi-se construindo como se tivesse a sua própria energia. Os nomes iam surgindo e as oportunidades também e sem que me desse conta, em pouco tempo, já tinha reunido um razoável número de entrevistas e frequentado uma riquíssima escola de vida
– Foi fácil para ti fazeres este trabalho?
I.V. – Fácil nunca poderia ser porque a minha experiência na área da entrevista era nula. Depois pelo facto de viver no Algarve, tive de me deslocar muitas vezes a Lisboa, mas creio que tive uma mãozinha vinda lá de cima que me ajudou não só a construir o projecto, como a ter a energia suficiente para correr contra o tempo. Foram uns meses de grande correria em que chegava a fazer 8 entrevistas em dois dias e depois regressava a casa onde tinha tudo por fazer. Mas valeu a pena.
– O que é a vida para ti?
I.V. – A vida é seguramente um grande mistério. É feita de cruzares e entrecruzares de muitas vidas. É uma aprendizagem. Uma busca da nossa verdadeira essência, um caminho pejado de perdas sobretudo dos afectos. Mas um verdadeiro milagre diário.
. – Quando a vida te puxa o tapete, onde te agarras?
I.V. – Agarro-me à minha fé porque ela não tem limites. Tenho passado muitos maus bocados na minha vida mas a fé ajuda-me a aceitá-los como degraus e não como castigos e por isso, sei que assim que subir aquele degrau as coisas vão ser melhores.
– Se a vida tivesse uma cor dominante, qual seria?
I.V. – Azul muito clarinho.
– E um som?
I.V. – O som das ondas do mar e o choro do vento.
– Tens quatro filhas. Que tipo de relação tens com elas?
I.V. – Uma das coisas que aprendi é que não se pode, ao mesmo tempo, ser-se mãe e ser-se amiga, a função de uma mãe é muito diferente, mas tento perceber quando posso ser uma ou outra. Tive a infelicidade de não poder construir a família que desejava. Ainda existe uma certa vergonha em se falar do fracasso que uma família reconstruída pode representar na esmagadora maioria das vezes, mas esse é outro dos grandes flagelos da nossa era. Este vai e vem entre a casa da mãe e do pai, gera sempre conflitos e quase sempre envenena qualquer tipo de relação que se possa querer estabelecer, sobretudo quando os filhos são encarados como uma espécie de arma de arremesso.
– O que tem havido mais na tua vida? Amor ou paixão?
I.V. – Eu diria que mais emoção. A minha vida tem sido uma sucessão de acontecimentos muito fortes, intensos e avassaladores que me obrigaram a um crescimento e amadurecimento abrupto.
– Qual a importância que o amor tem na tua vida.
I.V. – É fundamental nesse entretecer de laços de que a vida é feita. O amor é a força invisível que gera tudo o que é benéfico.
– E o sonho? És sonhadora?
I.V. – Tive a sorte de ter tido uma avó muito especial, a vóvó Clarinda, e hoje ao olhar para trás, vejo o quanto ela me marcou. Estimulava muito a minha criatividade e era uma grande fã. O sonho é importantíssimo para qualquer pessoa criativa pois é ele que nos inspira e nos impulsiona.
– O que te move? As causas, as convicções, as paixões?
I.V. – O que me move são as emoções. São elas que tornam o meu coração numa espécie de propulsor. As paixões também, mas são fugazes e às vezes deixam um travo um tanto ou quanto amargo.
– Qual é a tua maior paixão?
I.V. – Tenho várias. Deus, as minhas filhas, a musica e a escrita, os meus alunos… TODOS!
. – Deus?
I.V. – Sim e digo-o sem qualquer vergonha. Hoje Deus não goza de muita popularidade, não tem cotação na bolsa e muitos querem fazer crer que Deus é algo que se pode comprar. Para mim, Deus é um sentimento com que se nasce e que se torna patente em tudo o que fazemos. É evidente que amá-Lo pressupõe seguir um certo caminho, muito diferente deste por onde a Humanidade caminha. O caminho da luz, como eu lhe chamo, é seguramente um caminho muito mais difícil mas o único que vale a pena.
– O que mais abominas?
I.V. – A falta de espiritualidade pois conduz à soberba de si mesmo, logo a todas as outras coisas que se tornaram numa espécie de modus vivendis desta era, o egoísmo, a arrogância, a prepotência, a leviandade e por aí fora.
– O que te tira o sono?
I.V. – A vida é toda ela de nos tirar o sono, não é? Que evolução sofreu a humanidade? O que evoluiu foram as formas cada vez mais sofisticadas e preversas de exercer a sua bestialidade. A fome, a pobreza e a miséria moral estão mais acentuadas do que nunca.
– Como é que consegues gerir o tempo dos teus afectos?
I.V. – Tenho-me desgasto imenso tentando ser uma mãe muito presente, só que por vezes temporariamente indisponível e não tem sido fácil, sobretudo quando se tem uma profissão que nos obriga a uma grande entrega e há alturas em que me sinto esgotada. Os meus dias são uma verdadeira corrida contra o tempo, para conseguir uns minutinhos para mim mas quando o sentimento que nos une aos filhos, é o amor, conseguem-se verdadeiros milagres!
– Como foste conseguindo conciliar o facto de seres mulher, mãe e cantora, escritora e professora de musica?
I.V. – Tem-me saído da pele, a família não nos reconhece o direito a termos vida própria porque a nossa omnipresença é quase como que um dado garantido. Fui com muita dificuldade conquistando o meu espaço, sobretudo o meu espaço de isolamento e de silêncio, sem o qual não poderia nunca escrever.
– Se pudesses mudar algo em ti o que mudarias?
I.V. – Não mudaria nada porque acredito que são precisamente esses defeitos que dão sentido a essa aprendizagem que é a vida.
– O que é ser-se artista em Portugal?
I.V. – É tornar vivo o verbo sofrer e um grande acto de coragem. Nós os artistas somos consideramos menos que um cigano que apesar de não viver segundo as nossas leis, recebe por cada filho que anda na escola, tem direito ao rendimento mínimo garantido e casas à borla enquanto nós, em época de crise não temos qualquer tipo de ajudas. E tudo isto tem por base a falta de cultura. Existe a ideia de que só é artista quem quer quando na verdade, nasce-se assim. A nossa profissão é sazonal. Não temos nem 13º mês, nem subsídio de Natal, nem de Férias como os outros e dado a que não temos qualquer tipo de apoio, há que guardar algum dinheiro para as épocas em que temos menos trabalho. Depois temos outra coisa muito grave. Hoje um artista é uma “coisa” descartável, despede-se na hora, sem justificação apenas porque um outro se veio oferecer por metade, e a lista de injustiças é tão extensa que... creio que o abandono a que a classe artística foi votada é bem espelhada na vergonha que é a necessidade de mendigar quotas para a musica portuguesa.
– O que esperas ainda que a vida te traga?
I.V. – Sinceramente? A oportunidade de viver a vida como nunca a pude viver. Saboreá-la em vez de correr contra o tempo. Gostava imenso de me poder dedicar às coisas que gosto sem ter de me sentir culpada por isso, de ver editados os meus livros e de envelhecer bem.
– Tens algum lema de vida?
I.V. – Quem tem Deus dentro de si nunca está só. -
Como encaras o envelhecimento?
I.V. – Razoavelmente. Acho que a idade me tem trazido alguma sabedoria e outros encantos. É triste vermo-nos murchando a cada dia que passa, mas por outro lado, tenho vindo a descobrir que o meu universo interior está cada vez mais rico e mais profundo, como se fosse essa a maneira da natureza me ajudar a não esmorecer.
– E as rugas?
I.V. – As rugas são o mapa da minha alma. Ainda não tenho muitas mas já as vou tendo. As rugas mantém-me acesa a lembrança de que nada do que vivi foi de graça.
– O que foi que a idade te foi trazendo? Mais sabedoria ou mais preguiça?
I.V. – Seguramente que mais sabedoria. Hoje muito raramente, estrago aquilo em que toco, mas também me tem trazido uma incrível doçura. Quanto à preguiça, não. Gosto muito de viver e sobretudo de fazer coisas, de me apaixonar por projectos. A idade trouxe-me inegavelmente uma objectividade que antes não tinha. Ah! E uma coisa magicamente espantosa! A capacidade de rir dos meus próprios disparates!
– A morte preocupa-te?
I.V. – Eu costumo dizer que a morte só é dolorosa para quem fica e não para quem parte. Já sofri muitas perdas e todas elas deixaram um lugar vazio no meu coração, e nesse sentido, eu lido muito mal com a morte, porém, esse sofrimento levou-me a descobrir que só se morre de verdade quando se esquecem de nós, por isso, todos esses seres maravilhosos que por algum tempo iluminaram a minha vida, continuam e continuarão vivos. Aceito a morte como uma certeza e não como uma probabilidade e só espero que quando ela me vier buscar eu possa ir em paz.
– A solidão assusta-te?
I.V. – Já a senti e já a encontrei por demasiadas vezes nos olhos de muita gente e posso afirmar que é terrível. A vida acaba por ser uma caminhada solitária, onde de quando em vez, lá vamos encontrando alguém que nos entende, que nos toca na alma. Mas acredito que a solidão é uma das doenças mais mortíferas desta nossa era porque cada vez mais, a soberba de si mesmo, o egoísmo e a intolerância, empurram as pessoas para isso.
– Quem é a Isabel do Valle?
I.V. – Costumo fazer essa pergunta a mim mesma muitas vezes, e sinceramente ainda não sei. O que por um lado é bom! É mais um desafio. Conhecer este ser que habita dentro desta casca a que chamamos corpo. Há quem diga que a palavra que melhor me define é Intensidade, o que por vezes torna difícil essa convivência com esse mundo interior. Penso que melhorei com a idade. Não endureci. Continuo a sentir as coisas e a deixar-me tocar por elas mas descobri outras formas de as ultrapassar. Tenho uma imensa nostalgia em relação ao tempo da minha infância e uma imensa saudade de certas pessoas que me deixaram a sua marca.
– Que relação tens com o passado?
I.V- Até há bem pouco tempo eu tinha saudades do passado. Tinha saudades daquilo que eu já conhecia e experimentara, até ter compreendido que, mantendo-me cativa dessas memórias, estava a marcar passo, não evoluia. A idade ofereceu-me uma coisa maravilhosa sob a forma de uma varanda florida, por onde posso observar tudo. O passado tem importância sim, para que eu possa perceber o caminho percorrido, mas sobretudo sendo uma luz que vinda lá detrás me ilumina o futuro. Mas é no presente que a custo me tento manter. É difícil.
- Difícil como?
I.V. – A vida tornou-se de tal forma assustadora que inconscientemente, ou nos refugiamos no passado ou fugimos para o futuro. No fundo, muito embora ela seja pacifica, estou em luta permanente para não perder o aqui e o agora. O passado já foi. O futuro… não sei se existirá para mim. O presente é tudo quanto tenho… ainda!
– O que é a arte para ti?
I.V – É um sopro de vida, numa outra dimensão mais alta e mais profunda. É uma outra forma que Deus me deu de reinventar a vida e de torná-la mais bonita e suportável. A arte é sobretudo, a forma como eu vivo.
– Se te pedissem para escrever o teu epitáfio que palavras escolherias?
I.V. – Aqui jaz alguém que sempre esteve disponível para a vida e para os outros.
– Que mensagem gostarias de deixar nesta entrevista?
I.V. – Este pedaço de tempo a que chamamos vida passa tão depressa! É preciso estarmos disponíveis para ela e para tudo o que ela nos oferece. Existem inequivocamente dois lados, o sombrio e o soalheiro mas também a possibilidade de escolha. Aceitar que o lado sombrio nos proporciona oportunidades de aprendizagem e crescimento e que lhe confere tal sentido ascencional.
A vida não se nos oferece pronta. É um caminho construído à base de sonhos. Ainda que nos tentem dizer que eles são impossíveis. Não deixemos nunca de sonhar e não esquecer nunca que, se aquele que quase morreu ainda vive, quem quase vive já morreu.utografo.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5584983857231974594" />

sexta-feira, 11 de março de 2011

Ao sabor do vento




Neste entardecer em que a penumbra faz parecer que o sol se esmaga na linha do horizonte, saio do hotel rumo á beira-rio.
Vou sozinha comigo mesma, envolta num sem fim de pensamentos, enquanto rememoro passagens do passado que a saudade cristalizou na minha memória.
Por breves instantes, sinto-me triste, profundamente triste até que, inesperadamente, uma suave brisa vem brincar comigo, acariciando o meu corpo com incrível doçura.
Fecho os olhos, inebriada pela sensação que me provoca, aquele toque seda do vento contra a minha pele e que parece levar consigo, o peso que carrego sobre os ombros.
O mundo à minha volta, deixou de existir. Não tenho medo ou pudor que alguém me veja. Para mim, este vento magico e imprevisto, é a resposta às minhas preces, por isso, aceito o seu convite para uma valsa imaginaria, em que de braços abertos, danço com ele e por uma vez, em toda a minha caminhada, deixo-me apenas levar ao sabor do vento.
Não sei, creio nunca saberei, quanto tempo o nosso “caso” durou. Quando nos sentimos felizes, o relógio da alma, é quem marca o compasso, nem tão pouco sei, se foi sonho ou realidade, aquela verdadeira loucura de dançar com a brisa, mas, sinceramente, isso pouco ou nada me importa.
Sei apenas que veio bem de longe, bem de lá da linha do horizonte, onde o céu e a terra se parecem beijar. Sei que me trouxe uma carícia. Que dançámos. Que fomos felizes e que, quando partiu deixou em mim, um doce perfume de saudade.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

o riso das mulheres



Ao longo da vida, nós mulheres somos confrontadas por inúmeras situações, creio que intrínsecas do nosso próprio universo feminino por isso, ninguém como nós, para saber-lhes dar a volta.
Sabem como é aquela sensação, quando inesperada e incontornavelmente somos atraídas por algo que, numa montra nos chama a atenção?
Pois bem. Foi precisamente isso que me aconteceu quando, uma tarde destas, fui literalmente seduzida, por um lindo par de sapatos.
Fiquei algum tempo a olhar para eles. Fiz as minhas contas, pensei um pouco... até que, incapaz de resistir, entrei na loja. Quis no entanto o malfadado destino que o único par existente e que tão avassaladoramente me cativara o ego da vaidade, fosse o número acima do meu, porém, como mulher que sou, e decidida a não ser vencida por uma questão tão insignificante, comprei-os na mesma.
E lá fui eu, pelo resto do caminho, a imaginar-me com eles calçados, fazendo-me por esquecer que os pés inchados por ter calcorreado meia Lisboa, tinham contribuído para a ilusão de que me serviam como uma luva, ao mesmo tempo que tentava encontrar dentro de mim, argumentos que apoiassem a minha decisão como por exemplo o jantar dessa mesma noite.
Escusado será dizer que após algum descanso, e a ajuda do frio que a noite trouxe, dei comigo a caminhar segurando com dificuldade os maravilhosos sapatos com os dedos dos pés e com a sensação de estar a andar de barco!
Provavelmente, se não fosse mulher, talvez não tivesse reagido a esta caricata situação, ultrapassando-a sob recurso de uma das mais belas e eficazes armas, o riso, riso esse que não somente contagiou todos à minha volta, como ainda me fez reflectir e aprender uma bela lição.
Só quando aprendemos a rir de nós próprios e a encarar os nossos pequenos disparates e falhas com sentido de humor, é que encontramos um atalho para sermos mais felizes.

Estação das perdas


De quando em vez, a nossa alma fica retida na estação das perdas.
Assemelham-se a uma espécie de plataformas de incomensurável dor provocadas pela partida de familiares e amigos, dor essa que ao invés de se diluir, mergulhando-nos no esquecimento, se intensifica numa agonia proporcional à distância percorrida e também mais empobrecidos nos nossos afectos.
Apagados pela borracha do tempo, pequenos gestos, palavras, rostos e vozes, instantes partilhados, são revisitados pela alma que levada pela saudade nos mantém presente, que somos a soma de tudo o que deles ficou em nós.
Jamais poderemos evitar a estação das perdas e tão pouco, aprender a suportar o silêncio das vozes que se calaram mas seguimos viagem. De novo, só a nossa alma sabe, apenas sabe, em quantas mais estações deixaremos as nossas lágrimas e em qual delas ficará a derradeira, porém, em cada uma subsiste uma ténue e bela luz, que nos transmite sempre, esperança.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Com doçura



Ultimamente, tenho tentado aprender a conviver, com doçura, com este novo estado de invisibilidade que a maduridade me vem trazendo.

A certa altura, uma espécie de borracha, começou a apagar em mim, muitos dos traços, dos contornos que julgava serem meus.

De mansinho, algumas rugas fizeram dos meus olhos a sua morada e percebo, que por lá irão ficar, enquanto todo o meu corpo se transforma e se prepara para me acompanhar até ao fim dos meus dias.

Apesar de já ter presenciado, o que a passagem do tempo faz aos outros, nunca, nem sequer por um único instante, pensei como seria comigo, e como, envelhecer pode ser para muitos, uma verdadeira tragédia.

Durante muito tempo, habituámo-nos a achar que por termos tudo no sitio certo, éramos por isso donos do mundo, esquecendo, ou afastando de nós o pensamento, que um dia, também a borracha que apaga a frescura, viria operar em nós uma transformação tão profunda.

Mas eis que sábia, a vida nos oferece uma oportunidade única, a de vivenciarmos o mais maravilhoso dos milagres, quando, por entre lágrimas e tristeza, por fim compreendemos, que essa, pequena e invisível borracha, ao retirar a camada exterior, vai expondo, de forma ainda mais bela, a nossa alma.

Crise da meia-idade, é isto, o que muitos jovens adjectivam, ao fazerem troça, da doçura, da disponibilidade e da generosidade que a partir daí, fará parte integrante dos nossos passos

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Espelho de mim mesma

Todos os dias, incontornavelmente, tenho um encontro marcado. Do outro lado do espelho, a figura que se me apresenta, assemelha-se à imagem de mim mesma, contudo, com alguma satisfação constato, que, olhando o passado, compreendo o quanto ela foi mudando.
A de ontem era menos madura, mais impulsiva e ansiosa. Sabia menos, conhecia menos emoções, sorvia a vida com carácter de urgência, desconhecia ainda, a importância das coisas simples que suplantam tudo ou quase tudo.
Os olhos que do outro lado me fitam, reflectem ainda o brilho das estrelas e, na sua alma subsiste um fervilhar de sonhos de quem não carrega todavia, o fardo da esperança morta.
Amanhã voltarei a encontrar-me com ela. Um reencontro a cada vez mais pacífico e sereno. O corpo mais não é que uma crisálida. A vida metamorfoseia a alma soltando-a em forma de borboleta. Não me importa por isso, não ter mais tudo no lugar, desde que tenha a cabeça. Nem que não seja mais tão bonita mas que tenha postura, personalidade e carisma.
Hoje, amanhã e sempre, uma reflectindo a outra, ambas sabemos, que as marcas que o sofrimento deixou ficar, não foram em vão. São elas que iluminando o nosso olhar, o tornam verdadeiro, credível e especial. Que o caminho percorrido, pejado de inúmeros instantes maravilhosamente marcantes, foi intensamente vivido. Que cada perda, cada lágrima nos fez crescer.
Não me perguntem quantos anos tenho mas queiram saber de mim, se gerei e criei filhos, se tenho amigos, se ainda que com sonhos interrompidos, os meus braços acolheram dores alheias, se engolindo lágrimas fiz alguém sorrir, se troquei beijos, se fui capaz de dizer a palavra certa, que obra fiz, se fui luz iluminando os outros.
Sei que sou uma espécie de livro meio pronto e que me esperam ainda umas quantas páginas por escrever. Pretendo escrever todas elas, com a tinta da doçura em que a minha dor se transfigurou, porém, sempre com os olhos postos nesse espelho de mim mesma, para jamais me esquecer quem realmente sou.