quinta-feira, 27 de novembro de 2008

O peso da cruz

Quase todos nós carregamos na alma, profundas marcas que indelével mas continuamente, transparecem em muitos dos nossos gestos mas sobretudo nos nossos actos.
Nem sempre nos apercebemos delas, no entanto, elas se revelam secretamente marcando o compasso da nossa alegria mas seguramente do nosso sofrimento.
Quase sempre, um gesto ou palavra alheia, é tudo quanto basta para que para que essas tremendas cicatrizes do passado, se abram e se tornem em feridas abertas. A dor é infinda. Quase lancinante. Arde-nos dentro do peito. Condiciona todo o nosso ser. Leva o brilho dos olhos, o sorriso e, quantas vezes, a vontade de viver, porém não há como fugir.
Ciclos que ora se fecham e se abrem, levam-nos certo dia a compreender, quando essa dor se faz ouvir como um grito pungente, e nos impele a agir deste ou daquele modo.
Quando por fim, cansados de sofrer, damos ouvidos à nossa alma, ela clama pelo alívio do peso dessa cruz que carregamos.
O peso dos ódios, dos desejos de vingança, das mágoas, das más palavras, dos nossos incontáveis e incontornáveis medos, o peso dos inconfessáveis e secretos pecados, tudo bagagem demasiado pesada para quem um dia, partirá sem levar consigo, sequer os ossos.
Mas inegável, é esse chamamento a dada altura do caminho, como se a vida, só ela conhecedora do fim do nosso tempo, nos concedesse pela derradeira vez, mais uma oportunidade para sararmos as nossas feridas.
Talvez não valha a pena sentirmos ódio, quando afinal de contas, também os outros carregam o peso da sua cruz. Talvez não valha a pena, termos desejos de vingança pois a vida se encarregará disso. Talvez não valha a pena guardar as más palavras porque nos corroem a alma e envenenam o coração. Talvez, não valha a pena julgarmos e condenarmos os outros, ou não fosse o peso de uma cruz que carregamos, aquilo que nos iguala como seres humanos.

Um breve, breve instante

É impressionante, o silêncio que precede quase sempre, algo ruim. Assemelha-se a uma espécie de hiato, um breve suspense do tempo, como se a vida perante a encruzilhada, nos concedesse ainda uma oportunidade de escolha, recuar ou seguir em frente.
Contudo nesta louca corrida contra o tempo, estamos pouco atentos, absortos da mais crua realidade e da dura verdade que, indiferente aos nossos mais íntimos desejos, o derradeiro instante não nos pertence.
Quantas vezes, donos do mundo e, num breve, breve instante tudo muda. Os sonhos se desvanecem, a vida se apaga, o fim abrupto da felicidade.
Um breve, tão breve instante, é afinal tudo o que possuímos, ou na verdade, nem mesmo isso. Talvez valha a pena pensar se devemos ou não proferir aquelas más palavras. Guardar para nós o nosso sorriso. Partir em busca de vingança. Perseguir e afligir em nome do ódio e da inveja.
Breves instantes. Pequenos flashes de tristeza mas também de alegria são afinal, tudo aquilo em que consiste, esta breve passagem por este pedacinho de tempo a que chamamos vida, por isso, há que estarmos de ouvidos bem atentos a esse som do silencio, pois num breve, breve instante... tudo muda, tudo acaba.

Vida sem ti

Apesar do quase meio século de uma existência intensamente vivida, apesar da reflexão incessante e profunda sobre os mistérios da vida e da alma humana, apesar da dor e do sofrimento, ainda não sei, como se vive sem mãe.
Sinto no meu coração, o fim anunciado de um amor que teve início algures no tempo, um tempo que apenas se mede com a alma. Um amor que de tão grande, resgatou a sua própria imortalidade.
O tempo e só o tempo, foi capaz de tornar ainda mais inquebráveis, os laços que a partilha entretece. Da ternura, dos sermões, das advertências, dos sustos, das traquinices..., contudo, se existe lugar mais extraordinário, o útero da mãe, será sempre, o idílico a que só o sonho permite regressar, quantas vezes, sob a forma de um abraço bem apertado.
Ao longo da nossa vida, aprendemos muitas formas de amar. Aprendemos a amar outros que não os do mesmo sangue, outros que embora saídos do nosso próprio ventre, continuadamente nos revelam as diferentes matizes de que se reveste esse sentimento tão belo e tão profundo, o amor primordial que nos ensinou.
E caminhamos pelas estradas da vida. Rumo ao futuro. De encontro ao nosso destino, contudo, e sem que saibamos, ancorados no refúgio de um colo, pois enquanto temos mãe, será sempre ali, que encontraremos consolo.
Viver sem mãe, é perder o aconchego do ser que abraça todas as nossas imperfeições. É ficar amputado das mãos que nos amenizam qualquer dor.
É vermos ser, arrancado do peito, o pedaço que faz com que o nosso coração bata, também para os outros.

Era uma vez um sonho

Samuel era apenas um menino. Tinha oito anos de idade, porém a sua ainda curta vida, já tinha muito para contar. Vivia numa pequena aldeia, perdida algures no tempo e no espaço. Longe de tudo mas sobretudo do pai.
A sua casa era muito pequenina. Ficava escondida por entre montes que no inverno se cobriam de branco, montes esses, que os seus pés tão bem conheciam, pois ainda o sol não tinha nascido, lá ia ele a caminho da escola.
Samuel não conhecia o tempo de brincar, em casa, muito havia por fazer mas há noite, enquanto deitado na sua caminha, ele sonhava.
Mas este menino não sonhava com brinquedos, nem com roupas boas, nem mesmo com sapatos, o seu maior sonho, guardava-o ele em segredo, escondido dentro do peito, sobretudo da mãe, as lágrimas que à noite lhe faziam companhia, até que, exausto, se deixava adormecer num sono profundo.
Apesar da tenra idade, lembrava-se bem daquela manhã fria e triste, em que o pai tinha partido para bem longe, levando às costas uma mochila carregada de saudade e a promessa que em breve, estariam de novo juntos. Os anos tinham-se passado numa sucessão de dias de dura sobrevivência. As sopas de cavalo cansado ao desjejum, o caldo de courato antes da deita, as longas caminhadas sob os pedacinhos de cartão com que em vão, tentava tapar os buracos dos sapatos.
Na manhã seguinte, era dia de Natal. A mãe trouxera para dentro de casa um minúsculo pinheirinho, enfeitara-o com pedacinhos de algodão, algumas castanhas pintadas e pendurara na lareira suja e velhinha, uma peúga, pronta para receber qualquer prenda, e à noite, enquanto lhe aconchegava os cobertores, contara-lhe uma vez mais, a história do nascimento do menino Jesus e de como no céu surgira uma estrela que guiara os reis magos até ele.
Samuel esperou até ficar sozinho, depois, levantou-se da cama e foi-se pôr à janela. Olhou para o céu em busca da estrela mais brilhante. Fechou os olhos e pediu ardentemente ao menino Jesus, que tornasse o seu sonho real, depois, deixou-se embalar pelo suave som da neve, que caindo de mansinho, o fez adormecer.
Subitamente, a porta da casa abriu-se. Samuel acordou meio estremunhado. Esfregou os olhos e voltou a esfregar. Não. Não podia ser verdade, ali, bem á sua frente, recortada pela luz do sol que o nascer do dia trouxera consigo, a figura de um homem. E eis que enormes braços se abrem. Oferecendo o peito como guarida. Oferecendo a este menino, o único presente que alguma vez desejara, o colo do seu pai.